ZECA MEDEIROS

Capa Zeca Medeiros

ZECA MEDEIROS

“A dúvida soberana” uma obra-prima

 Desde há muitos anos que as belas ilhas do arquipélago dos Açores são, para além de um verdadeiro paraíso e um inacreditável deslumbramento paisagístico, um enorme viveiro musical, explicado pela existência de um grande caudal artístico, traduzido num crescente número de artistas e de grupos e por um espólio musical extenso e de altíssima qualidade, no que toca especialmente à área da música popular portuguesa e tradicional; quem não recorda por exemplo populares canções que desde há muitos anos fazem parte do espólio musical português e do nosso imaginário musical tais como “São Macaio”, “ A fofa”, “Eu fui à terra do bravo”, “Cantiga da terra”, “A charamba”, “Olhos pretos”, “Tempo de partir”, “Sapateia”, “Lira”, “Chamateia”, “O bailado da garça”, “Baleeiro”, “Pézinho”, “Chamarrita”, “O cantador” ou “ Hino do divino Espírito Santo” e uma série de artistas a solo ou colectivos como Zeca Medeiros, Carlos Alberto Moniz, Rimanço, Suzana Coelho, Fernando Machado Soares, Belaurora, Minela, Vera Quintanilha, Luís Bettencourt ou o irmão deste Nuno Bettencourt, que desde há muitos anos é parte integrante dos bem sucedidos Extreme, sediados nos EUA?

É na verdade um grande e quase infindável desfile de canções e de artistas, alguns já de certa nomeada, com que os Açores tem sobremaneira prestigiado a nossa música de texto e que vem comprovar não só uma grande vitalidade musical, mas também uma grande diversidade e pluralidade artística, aspectos que sem dúvida vão ajudando a enriquecer cada vez mais, e gradualmente, a nossa, por vezes esquecida, mas sempre  bem amada, música popular portuguesa…

Pois, este mesmo filão musical de origem açoriana é agora de novo notícia pela edição de um novel projecto autoral da responsabilidade de Zeca Medeiros, obra não só absolutamente singular, mas também pedra fundamental no combate contra um certo marasmo instalado e, convenhamos que  também, alguma falta de criatividade que tem invadido a nossa querida MPP, especialmente nos últimos tempos, em parte derivado não só da maldita pandemia que a todos assolou um pouco por todo o Globo, mas também, e acima de tudo, por uma certa falta de apoios e de compromissos editoriais por parte das companhias multinacionais sediadas entre nós, que à música popular e de texto quase nada tem na realidade ligado nos últimos anos, em detrimento de obras menores em língua estrangeira que cada vez mais vão tóxicamente poluindo o nosso ambiente radiofónico, televisivo e jornalístico; daí a proliferação das edições de autor, em que os seus mentores custeiam todos os gastos, limitando-se as chamadas majors a aproveitar o talento e trabalho alheios, ficando-se somente distribuir o produto, quase nada arriscando, isto monetariamente falando, é claro!

Com efeito, e depois de há meia dúzia de anos atrás ter editado o fabuloso trabalho “Aprendiz de feiticeiro”, o cantautor açoriano, também conhecido e conceituado realizador de cinema (O livreiro de Santiago, etc.) e de televisão (Mau tempo no canal, Gente feliz com lágrimas, Xailes negros, etc.), começou, ainda antes do inicio da  pandemia, a trabalhar em profundidade com tempo, dedicação, amor e sem dúvida muita inspiração, recuperando antigas canções, preparando, escrevendo e  gravando uma nova obra discográfica, terminada já depois em plena pandemia, que sem dúvida, e em face da sua altíssima qualidade, quer temática, quer sonora, quer mesmo instrumental vai por isso mesmo acabar por ficar para os anais da música popular portuguesa:- “A dúvida soberana” (CD +DVD).

Trata-se de  um projecto quase conceptual, onde o artista micaelense surge, na plenitude das suas reconhecidas qualidades de compositor, intérprete e instrumentista, rodeado de uma série de grandes instrumentistas como Davide Zaccaria, Luís Bettencourt, Carlos Guerreiro, Ricardo Parreira, Manuel Rocha, Miguel Quitério e Paulo Vicente, entre outros e de um excelente naipe de vozes, já de gabarito, tais como João Afonso, Katia Guerreiro, Filipa Pais, Maria Anadon, Marta Rocha Pereira, etc.

Abordando, profunda e profusamente a temática das viagens e navegações marítimas (até na composição de abertura do disco se celebra o “achamento” da Ilha de Sta. Maria) o autor fala-nos aqui de barcos e marinheiros, sonhos e inquietações, mistérios, aventuras e desventuras, mulheres cobertas de xailes negros, maresias, ondas alterosas e acalmias, náufragos e escravos, destinos atlânticos, arpões e baleeiros, relembra um velho livreiro (um açoriano emigrante que acabou por se tornar no  primeiro editor do gigante Pablo Neruda (vide o filme ”O livreiro de Santiago”), fala de rituais de sangue, ousadias e bravuras, prantos derramados à flor do mar e também à flor da terra, Ulisses, Itaca e bailados insulanos, sonhos sem rumos, brumas, latitudes, danças das ondas e de marés, ilusórias mas atractivas sereias, atlantes e utopias, carregadas trevas, bailados, âncoras de esperança e ilusão, enfim histórias reais e imaginárias de gente feliz com e sem lágrimas (aqui se relembra o meu querido amigo e escritor micaelense João de Melo) e de açorianos com destino traçado ou indefinido, na esperança adiada de um fado por descobrir, e quem sabe, até por desvendar, qual viajante da utopia em madrugadas de sal e de ilusões ou qual náufrago num circulo fechado rodeado de amazonas, feiticeiras, encantadores de serpentes, bruxos e profetas, à procura de uma imaginária roda da fortuna, e no entanto sentindo-se perdido em sobressaltos, quimeras,  ilusões e inquietações sem fim e, apesar dum grão na asa, sempre eternamente confiante numa possível redenção que lhe há-de ser outorgada  sob a bandeira do Divino, que no final há-de levá-lo de novo de regresso a casa, de volta ao aconchego, esperando assim que a volta da maré lhe permita fintar de novo a tristeza no relvado da sorte e na certeza de se ver de novo em jogos viciados, sob a luz de uma trémula candeia,  a ganhar aos matraquilhos, à bisca e ao dominó, sempre ao abrigo do sonho utópico de uma nova Grândola vila-morena e de uma doce fraternidade que lhe permitam um final feliz ao compasso de um coração inquieto, que no entanto o ajudará a vencer as muitas marés de uma certa e labiríntica assombração…

Está assim, portanto, de regresso, um notável artífice da palavra, um retratista de viagens marítimas e um peregrino de aventuras e grandes emoções, que  mais uma vez surpreende pela sua extraordinária veia criativa e pela excelência das suas propostas, ao mesmo tempo que se transforma de novo num romeiro de aventuras terrenas, marítimas e atlantes e, acima de tudo, num carismático e bem sucedido alquimista  da música popular portuguesa; um homem que nunca tendo tido necessidade de se colocar em bicos de pés para dar a conhecer o altíssimo nível da sua obra quer discográfica, quer cinematográfica, e que efectivamente tem sido, com muito raras excepções, pouco menos que injustamente ignorado pelos media nacionais que, apesar de tudo e tardiamente, ainda vão agora a tempo de reconhecer a altíssima qualidade e beleza do presente trabalho deste artesão musical açoriano, tranquilo e  injustiçado, a quem agora e perante a evidência desta obra, terão obrigatoriamente de pedir desculpas não só pelo crime de lesa cultura musical que desde há alguns anos a esta parte vêm praticando, mas especialmente por todo o ostracismo a que o têm votado, factos que os tornam cultural e  criminosamente culpados!!!

Este novo trabalho é um verdadeiro bordado musical, tecido artesanalmente sob as sonoridades da música popular portuguesa e recheado com sons de fado, laivos de música celta, ares sonoros de Buenos Aires e de Astor Piazolla e acima de tudo impregnado com perfumes musicais  e sonoros absolutamente soberbos e embriagadores, qual sublime aroma emanado das diversas ilhas pelos milhões de multi-coloridas hortênsias floridas, que no período compreendido entre Fevereiro e Maio de cada ano, alegram de modo quase orgasmico e para comum deleite, os nossos sentidos olfactivos, bem como os apurados narizes  de locais, turistas e dos incorrigíveis amantes da fotografia, que por lá sempre pululam como abelhas voando e zumbindo em volta do néctar das flores…

Contendo 14 canções discograficamente inéditas no CD e 24 videos, alguns de algumas composições agora revisitadas e outras talvez já esquecidas, bem como alguns inéditos, a obra  é luxuosamente apresentada com um libretto de 120 paginas, onde as ilustrações, de certo modo surpreendentes, sugestivas e apelativas são da autoria do próprio Zeca Medeiros, um trabalho que contém várias histórias centradas nas ilhas açorianas e especialmente no historial marítimo do belo arquipélago, no sofrimento, aventura, vida e descobertas das gentes locais; o projecto, recheado de grande sensibilidade poética, musical e sonora, é simultaneamente, um verdadeiro manancial de inspiração, de vitalidade e de grandes epopeias, de histórias de viajeiros e de marinheiros, mas acima de tudo é um livro aberto sobre as diversas ilhas, sobre aventuras e desventuras marítimas, não deixando no entanto de falar também, indelevelmente, sobre o amor.

Um disco brilhante, com uma grande produção de Tiago  Rosas (Palco de ilusões) que acaba por constituir-se ao mesmo tempo como um manancial de belas e inspiradas canções, que no seu âmago e na sua intrínseca qualidade, transformam ao mesmo tempo este notável projecto num verdadeiro acto de revolta, qual grito do Ipiranga dado à beira-mar de uma qualquer ilha, clamando por reconhecimento geral dos habitualmente “surdos” media nacionais; e se até agora era legítimo e habitual tomar-se como medida de comparação em termos de “o melhor disco da MPP” o notável  “Por este rio acima”, a partir de agora essa medida de comparação terá  forçosamente de mudar e ser transferida para esta obra-prima do cantautor micaelense (já  anteriormente agraciado com galardões como o “Prémio José Afonso” em 2005 para o disco “Torna-viagem”), pois este  A dúvida soberana” é  simplesmente o melhor trabalho de sempre da nossa música popular portuguesa!!!

José com o João e o Moças

CD/DVD Tradisom