Edição de luxo em digipack com livreto trilingue (português, inglês e Konkani) de 122 páginas a cores.
A música e a dança em Goa traduzem bem a pluralidade de expressões e de processos acima descritos. A sua prática está também associada à casta, isto é, cada casta é detentora de um repertório próprio, sendo que hindus e católicos estabelecem uma distinção clara relativamente ao tipo de música que desempenham. Comum aos dois grupos é a existência de dois registos: um a que chamaremos de tradição erudita e outro de tradição popular.
As canções reunidas neste CD constituem um excelente exemplo dos múltiplos processos musicais que nos permitem hoje definir a categoria «música goesa» e o contexto da «música em Goa». O mando e o dulpod (nº1, 7, 10, 12) definem a forma mais elaborada de canto harmónico não religioso e representam o repertório por excelência dos brâmanes e dos chardós católicos. O mando conta-nos, delicadamente, histórias de amor e de saudade, com uma dolência profundo que contrasta com a alegria e a jocosidade do dulpod. Este, revela-nos outras histórias: as do quotidiano; fala-nos da brincadeira, do rumor, da curiosidade e dos aspectos mais comuns que caracterizam ambiências e vivências de Goa. A presença do dulpod após o mando prende-se com a dança, ou seja, estas duas canções podem igualmente ser dançadas, aspecto que era quase obrigatório na boda de casamento dos católicos até à década de 60. O dekhnni (nº 2, 6 e 11), constitui o melhor exemplo de intercepção entre a realidade hindu e a católica. É um género cantado e dançado inicialmente pelas «bailadeiras» (nome atribuído pelos portugueses às mulheres devadassi) e foi proibido pela igreja católica que reprovava também a presença das suas protagonistas em qualquer festividade hindu. O dekhnni resistiu, todavia, a todas as proibições e é hoje cantado e dançado por católicos. Apropriou a harmonia tonal e transformou a sua interpretação de acordo com os referentes musicais dos novos intérpretes. Uma apreciação mais cuidada definirá o dekhnni contemporâneo como uma canção feita por católicos sobre um aspecto da realidade hindu, outrora tão reprovado socialmente mas, também por isso, tão sedutor. Alguns ingredientes musicais mas sobretudo a dança perscrutam esse outro lado de Goa, que o aproxima da Índia através da exuberância dos trajes e adornos e da sensualidade que o corpo nela exibe.
A proposta que o grupo Gavana nos oferece neste disco aglutina, de algum modo, os diferentes processos que poderão definir o contexto da música em Goa. Indicia, por um lado, uma vivência musical intensa ao re-interpretar danças e canções que, na sua maioria, fazem parte do repertório familiar dos elementos do grupo; ao conferir, por outro, a esse mesmo repertório uma organização instrumental e vocal mais sofisticada, dá-nos conta de uma realidade recente em Goa, definida pela formação de grupos vocacionados para a representação em palco; finalmente, ao incluir neste disco uma composição nova (nº5), da autoria do seu director musical, exprime também o conceito singular que os próprios goeses têm de música tradicional: não se confina exclusivamente ao repertório do passado mas procura renovar-se, reconhecendo nos compositores contemporâneos a mesma autoridade para construir a tradição.
A edição do primeiro CD de música goesa gravado na Índia, marca um longo percurso construído à conta de emoções, de desafios, mas também de alguma intranquilidade. Este document permite, efectivamente, o acesso ao som, às palavras e às vozes, mas oculta toda a component cénica, coreográfica, gestual e contextual que definem a música e que constituem ingredients cruciais para identificar a «música goesa». Assim, independentemente do valor insubstituível do CD e destas gravações, não deixamos de estar perante uma leitura redutora do comportamento expressivo a que chamamos música, embora, a outro nível, este mesmo documento se mostre surpreendentemente revelador: desvenda-nos o fascínio da viagem e testemunha a possibilidade que a música tem de acompanhar as pessoas e de sobreviver a elas. Goa oferece-nos de facto um magnífico exemplo dessas viagens seculares e da adopção e adaptação de códigos musicais que mantiveram a vitalidade suficiente para serem hoje autónomos e permanecerem em constante recriação.