UM
1.
Há mais de um século que em Portugal, homens e mulheres, muitos deles já idosos, são alvo de um etnotráfico.
Munido de lápis e papel, de gravadores, de câmaras fotográficas ou de máquinas digitais, um corpo de investigadores organizado ou informal, tem devassado gerações de rurais e urbanos em busca de tesouros musicais e literários, assim como de velhas práticas e costumes.
A partir da intenção, sempre renovada, de salvar o património cultural português, gerações e comunidades têm-se esvaziado dos seus bens, os quais têm sido entesourados, em diferentes suportes, em arquivos particulares e públicos.
Sobre eles, os bens colhidos da boca do povo, homens e mulheres produzem livros e ideias. A crítica é diversa e a prova histórica e literária segue vários caminhos. Existe uma classificação que vai desde o «puro» ao «contaminado».
Edita-se o produto deste etnotráfico. Livros, discos, cassetes, DVD’s. Edições para ouvir o povo. São os nossos indígenas. As suas áreas tribais são as comunidades onde vivem. Nunca se partilham lucros. O informante existe e não existe.
Quando sabemos o seu nome, é de uma forma lacónica. Temos uma linha de identificação. Um local. Uma idade. Por vezes a profissão. Tantas vezes temos a aposição de «tio» ou «tia». Precede e é regional.
São informantes, informadores, colectados. Designações de um sujeito que de facto não existe. Não existe porque transporta algo de um passado. De um passado que é colectivo. Que é português. Hispânico. Pan-hispânico.
2.
Portugal, que possui uma arquitectura legal, não tem dado atenção a esta «coisa». Nem à defesa do bom-nome de gerações de homens e mulheres. Em fichas, sem conhecimento do «fichado», esmiúça-se a vida. E inteligente, sabe ler ou não, bebe, é trabalhador ou trabalhadora…
A seguir ao trabalho científico, vem outra gente. São os poetas e os músicos. Nova música tradicional. Música tradicional urbana. Gravam-se os temas que outros, ou os próprios, na peugada do mítico Michel Giacometti, deram a conhecer.
O povo não tem direitos de autor.
3.
A propriedade intelectual é hoje, dentro das discussões sobre salvaguarda do Património Cultural Imaterial, uma questão incontornável. Não é possível, na nova sociedade de informação, fazer de conta que tal não existe. De qualquer forma, o Outro começa a lembrar-nos de tal.
Após décadas de exploração começa a surgir a resposta. Soa-nos a estranho que o indígena nos peça dinheiro ou se recuse. Ou impeça. O trabalho científico, chapéu por vezes demasiado largo, já não consegue tapar todos os buracos.
4.
Em Campo Maior, há alguns anos, a filha de Maria Teodora impediu que a voz de sua mãe, entretanto falecida, fosse animação musical de rua durante as festas dos Contrabandistas.
Quando fizemos trabalho de terreno para recuperar o nome e a biografia daqueles que foram filmados em Campo Maior fomos confrontados com isto. E também tivemos de pedir autorização.
5.
Se reagimos tantas vezes contra a pilhagem de património material que a Europa fez em África, na Ásia e na América, porque não procedemos da mesma forma em «casa»? O riso de ironia contra alguns museus americanos que compraram na velha Europa castelos, palácios e claustros tem um lado sombrio: o do predador que sabe que também pode ser vandalizado.
Tudo depende de onde se localiza o centro e a periferia.
DOIS
1.
O sexto volume reúne três contribuições.
Manuel Rocha evoca Michel Giacometti e reflecte, emotivamente, sobre a série Povo que Canta Não Pode Morrer. Ele que, há alguns anos, com Ivan Dias, construiu e revisitou locais e gentes que antes, o «andarilho» que sabia ouvir, tinha calcorreado e contactado.
Um novo roteiro etnomusicológico por um Portugal de finais do século XX.
Domingos Morais, num outro território, constrói um olhar diferente. Analisa um percurso e uma obra de um investigador visto como singular no panorama português.
A entrevista a Luísa Tiago de Oliveira complementa, e amplia, um conjunto de reflexões já partilhadas por Jorge Freitas Branco. Procurou-se cruzar o olhar da História com o da Antropologia, na análise crítica a uma vida e a uma obra.