UM
1.
O Portugal de 2009/10 não é o país do Povo que Canta, nem este era o que Michel-Marie Giacometti conheceu em 1960, quando chegou a esta terra.
Os homens e as mulheres que surgem nesta série, e que foram sendo filmados entre 1970/72 pela equipa da RTP sob a direcção de Alfredo Tropa, são a escolha possível do «catálogo» que Giacometti tinha de informantes disponíveis.
Aquando do confronto entre filmes e participantes, muitos deles olharam com nostalgia para as imagens, chamando sempre a atenção para práticas que já na altura, em 1970, não se executavam, ou deixaram de se executar pouco tempo depois. Por vezes era um chapéu, ou uma técnica agrária.
E, pois, claro que Giacometti procurou ilustrar com imagens em movimento a Antologia de Música Regional.
O que significa que, na altura, o Portugal de Povo que Canta já era um país diferente. Alfredo Tropa recupera, numa cinematografia engajada na denúncia social, fortes imagens de uma realidade empobrecida e em perda demográfica. O país de fronteira já então era uma região a caminho do ermamento.
2.
Para os que ficam, o ermamento demográfico é também uma amputação etária. Os novos partem, os velhos permanecem.
Foram estes velhos que visitámos ao longo dos diversos meses em que calcorreámos Portugal na busca e na afinação geográfica dos locais onde Povo que Canta foi gravado.
Muitas pessoas já tinham morrido, outras tinham partido para outros lugares (Região de Lisboa, na NUT II, muitas delas), outras estavam de regresso de uma qualquer migração, outras envelheceram por ali.
3.
Dos velhos de hoje, que foram o «catálogo de informantes folclóricos do século XX português», poucos restam. E os que restam encontrámo-los numa realidade espantosamente diferente: são utentes de um lar ou centro de dia, ou recebem apoio domiciliário, alimentos, cuidados higiénicos, companhia.
4.
De homens e mulheres possantes, estes trabalhadores rurais, quarenta anos volvidos, tornaram-se velhos e foram realojados em não-lugares, onde toda uma vida foi alterada. Vivem em quartos que partilham com outros que conheceram ali. A sua intimidade desapareceu. Recebem visitas, ao fim-de-semana.
Algumas mulheres são respigadas de outras utentes para transmitirem anexins, contos, lendas e cantos. Aqui e além, grupos folclóricos integram estas pessoas para refazerem teatros que contextualizam momentos perdidos.
5.
Em Sabóia, em Santiago Maior, em Castelo Brancos, etc., encontrámos elementos deste «catálogo» que ainda estão activos e continuam a cantar as mesmas coisas, que diferentes gerações de colectores continuam a gravar e a salvar da perda. Alguns têm uma actividade de mais 70 anos de serem colectados.
6.
Em muita bibliografia romântica e positivista, os velhos encontram-se à lareira, contam contos aos novos, enquanto os possantes filhos chegam a casa. Até há uma lição de Salazar quase assim. Um castelo, parece ser o de Monsanto, espreita à janela.
Os velhos de Povo que Canta vestem roupa coçada, as mãos estão deformadas pelo trabalho, lamentam a fuga para França, para Lisboa…
Os utentes, detentores de identidades perdidas e em contínua reconstrução, encontram-se realojados, parqueados frente à televisão, tratados como velhinhos e, de quando em quando, são reativados para cantar.
7.
No dia 24 de Abril deste ano de 2010, no lar adentro taras, um grupo de crianças, vestidas de capitães de Abril, irrompeu por ali dentro Ladeadas pelas educadoras e em marcha, as crianças circundaram as instalações, distribuíram cravos e cantaram a «Grândola». «Vieram ver os velhinhos». A entrevista a uma cantadora de baldão, canto de improviso e desafio do Baixo Alentejo, foi interrompida. Atrás de mim alguém disse:
«Agora é que são felizes! Com esta idade andava a ajudar o meu pai nas porcas.» Era um utente, filho de um porqueiro.
8.
O «catálogo de informantes folclóricos do século XX português» está a pouco e pouco a ser arquivado. Ainda não é bem um arquivo histórico. É um arquivo morto. Ainda necessário a quem procura salvar o povo português.
DOIS
1.
Neste volume reúne-se um conjunto de contributos, além dos guiões de Giacometti para a série Povo que Canta.
O Dr. António Catana, investigador de Idanha-a-Nova, escreve sobre Catarina Sargenta, de Penha Garcia, que Michel Giacometti considerava como uma das melhores vozes por si ouvidas, e que lhe tinha sido indicada por Ernesto Veiga de Oliveira.
O Professor Doutor Paolo Scarnecchia, director artístico do festival VisMusicae (Itália), e um dos maiores conhecedores da poesia improvisada do Mediterrâneo, escreve sobre esta prática poético-musical e dá-nos um quadro da sua permanência neste mar interior.
Augusto Brázio visitou um conjunto de lares de terceira idade, e sobre eles construiu um olhar. É uma face actual de Povo que Canta.