MÍSIA – que regresso!

Mísia

MÍSIA
que regresso!

Falar-se de Mísia é sinónimo de se falar de uma artista peculiar e sui-generis, de uma grande interprete e ao mesmo tempo de uma guerreira e de uma das melhores e mais carismáticas cantoras nacionais; dona e senhora de uma voz profundamente sentimental, solitária e bela, foi graças a uma carreira a todos os títulos notável e bem sucedida que se transformou em alguns anos numa das mais exemplares cantoras portuguesas.

Há tempos atrás, para surpresa geral e após ter conseguido com preciosa ajuda médica, resolver um grande problema de saúde que chegou a colocar a sua vida em risco, abalançou-se a lançar um novo trabalho de grande folego que  acabaria por se constituir como um notável disco- “Pura vida (banda sonora)”, trabalho considerado de certo modo surpreendente especialmente pelos seus inúmeros admiradores; foi simultaneamente um disco ambicioso e brilhante, um projecto que para além de marcar o seu retorno aos estúdios de gravação, assinalava também nessa altura, não só o final de uma guerra titânica e ao que se sabe, uma posterior e saborosa vitória contra dois inimigos tão silenciosos quanto quase sempre mortais – uma dupla de malditos cancros, afinal uma maleita ainda mundialmente espalhada, que durante o seu tempo de duração infelizmente lhe toldou memorias, vivências, amplitudes, desejos e futuro, mas que acabou, no caso particular de Mísia, por de certo modo marcar indelevelmente o seu “regresso” à musica, à vida quotidiana e à vida artística depois de ultrapassado esse período tão difícil, tão dilacerante, tão extremamente conturbado e de precária saúde, numa verdadeira batalha que afinal acabaria por se transformar num intenso período de luta, de pessoal duelo, temporal e especialmente…pessoal!

Esse mesmo projecto constituiu na altura e face a todas as dificuldades que houve que vencer, às grandes vissicitudes e consequente tempestade interior, numa das maiores vitórias e surpresas  dos últimos tempos no panorama musical português pois face às grandes e propaladas dificuldades de saúde que Mísia teve que estoicamente vencer, um brutal problema de saúde que ainda por cima aconteceu no meio de uma maldita pandemia viral de covid 19 e acabou por transformar, sem qualquer dúvida, essa verdadeira batalha pela sobrevivência, em algo mais especial, mais assumidamente pessoal, mais interior, mais intenso, mais sentido, mais profundo e acima de tudo, e à posteriori,  mais intensamente vitorioso…

Agora, algum tempo volvido, vencida que está essa primeira e grande batalha da saúde, aí temos de novo a nativa da capital nortenha – o Porto, a cantora, fadista e guerreira a propor-nos um novo trabalho de grande folego cujo titulo genérico tem muito a ver com ela, pois identifica-a na plenitude e cola-se-lhe na perfeição- “Animal sentimental”.

Trata-se de  um novo e ambicioso projeto que assinala os trinta anos de carreira da  bela interprete nacional, uma obra marcante que surge simultaneamente sob a forma de tríptico – um álbum, um livro autobiográfico e um espectaculo que junta as histórias do livro e a totalidade das onze composições do disco; o projecto, verdadeiramente  notável e ambicioso aparece conduzido pela própria  Mísia e por Wolf-Dieter Karwatky, premiado produtor e engenheiro com mais de 50 anos de carreira que tem trabalhado, entre outros, com alguns dos maiores nomes da música clássica, coleccionando Grammys e somando projetos de sucesso alguns deles com a chancela da prestigiosa editora alemã Deutsche Grammophon.

Em Lisboa, o produtor gravou com Mísia e uma série de experimentados músicos nos históricos estúdios Namouche  sendo que o nóvel projecto incluiu o pianista Ricardo Dias, que assumiu a direção musical e os arranjos e ainda o pianista Fabrizio Romano, os guitarristas Bernardo Couto (guitarra portuguesa), Bruno Costa (guitarra de Coimbra), Bernardo Viana (viola de fado), Luís Ferreirinha (viola) e também o baixista Daniel Pinto.

E são eles que juntamente com uma mão cheia de inspiradas composições  podemos escutar num cuidado alinhamento que cruza para deleite dos ouvintes alguns novos arranjos para temas a que Mísia já tinha dado voz anteriormente, mas também inclui quatro surpresas como sejam por exemplo: -“Qué he sacado con quererte” da imortal Violeta Parra, “De alguna manera”, tema em castelhano com letra e música de Luis Eduardo Aute que Mísia já tinha também anteriormente interpretado, mas que aqui ganha na realidade uma segunda vida, havendo ainda a registar também no alinhamento e na categoria das gratas surpresas  a composição “Fico a Cismar”, um belíssimo e inspirado original do ex-teclista dos “desaparecidos” Madredeus- Rodrigo Leão com letra da cantora brasileira Ana Carolina.

De seu verdadeiro nome Suzana Maria Alfonso de Aguiar, longe vai já o tempo em que em 1991 publicou o seu primeiro disco- “Mísia” e daí para cá o seu percurso foi sempre ascendente e coroado de sucesso;  expressando-se fluentemente em várias línguas – francês, espanhol, catalão, napolitano e logicamente em português, a cantora nortenha filha de pai português e mãe catalã consolidou ao longo dos últimos  anos um percurso notável e deveras brilhante, construindo uma sólida e entusiástica carreira nacional e internacional culminada com mais de uma dúzia de discos em que cantou e por vezes deu nova vida a canções ou obras literárias de gente de elevado gabarito literário ou musical como sejam, entre outros, Violeta Parra, Luis Eduardo Aute, Mário Claudio, Fernando Pessoa, Mário Pacheco, Pedro Homem de Mello, David Mourão Ferreira, Alain Oulman, Amália Rodrigues, Ana Carolina, Rodrigo Leão, Miguel Torga, etc, etc.

Revelando-se, ainda e sempre uma inesquecível e carismática interprete, Mísia ainda consegue surpreender-nos na audição da sua mais recente publicação discográfica por vários motivos:- em primeiro lugar pela extraordinária força que transparece e emana das suas singelas, profundas e pessoalíssimas interpretações, isto pese embora os anteriormente referidos graves problemas de saúde, que durante dois anos lhe toldaram o animo, a capacidade de viver e o raciocínio e que num qualquer comum mortal  provocariam no mínimo um compreensivel e profundo desânimo e até …pensamentos suicidas; segundo pela forma quase em modo viking warrior como a artista conseguiu sobreviver a todas as desgraças que lhe bateram à porta e por ultimo porque a excelência destes dois últimos discos é uma espécie de bofetada de luva branca em todos os seus detractores e em toda a media deste país tantas vezes arcaico nessa área, medieval e ancestral que do alto do seu pedestal feito de plástico, ignorancia e futilidade literária se arvoram tantas vezes em detentores da verdade; para responder a esses mesmos detractores que antigamente a “sovavam” por dá cá aquela palha, ela regressou com uma  força descomunal, tal qual um vulcão em plena actividade jorrando lava para os ares em plena monumental erupção de que o Etna da Sicília pode hoje em dia ser o melhor e mais flagrante exemplo.

E regressou como os mais audazes:- cantando em português e em castelhano, como uma destemida e indomável guerreira de antes quebrar que torcer, em que ela realmente se transformou, assumindo-se outra vez como uma mulher de armas ( tal qual em tempo de guerras medievais como uma verdadeira padeira, desta vez não de Aljubarrota, mas do Porto) e reafirmando a sua indómita e firme vontade de vencer mais uma etapa (difícil) do seu percurso na Terra, uma existência que afinal ela ama mais que tudo apontando já até na sua vida artística para novos e rasgados horizontes, se bem que o fado continue a ser nela rei e senhor, a mesma área onde afinal de contas ela sempre foi princesa e até algumas vezes  raínha, pese embora tudo que dela disseram e profetizavam os conhecidos vampiros musicais e os mais impreparados e habituais arautos da desgraça alheia, quando chegaram até ao desplante de insinuar que não sabia cantar !!!

Alguns deles, e é dos media nacionais que falo, coitados, se calhar nunca entraram sequer num vulgar estúdio de gravação nem uma nota de música sabem e no entanto bastas vezes se arvoram em grandes…conhecedores!!!

E se antes do disco anterior, no tal período da sua vida artística que ela própria classifica como “…um período de doença em que há céu e inferno, dureza e paixão…” estava como que limitada e indefesa, agora, mais forte e tenaz que nunca, já  munida de uma vontade verdadeiramente telúrica e de uma verdadeira armadura que é o seu novo disco – “Animal sentimental”,  Mísia está assim,  mais que nunca, preparada e pronta para a luta de novo contra a ignorância, a maledicência e o preconceito pois tem a consciência de que concebeu mais um grande trabalho, onde alarga os seus horizontes musicais e se transcende vocalmente, cantando textos soberbos, plena de personalidade, maturidade e

acima de tudo de sentimento que afinal de contas é uma palavra que não pode ser dissociada da musica e especialmente do…fado.

Resta agora saber-se se os media e a intelligenzia nacionais vão dar ao disco o destaque que ele merece e lhe concedem honras de promoção nas suas programações, pois quase sempre privilegiam  musicas com origem no estrangeiro em detrimento da boa musica portuguesa, que pouco a pouco vai surgindo por aí editada!

Mísia

CD Galileo Music/Uguru