E de repente estava ali tudo!
A décima, que há tantos anos me fascinava como estrutura poética, que me intrigava por quase ter desaparecido depois do sec. XVII e reaparecido no sec. XIX, cantada no Fado de Lisboa e recitada no Alentejo (c´os diabos, porquê no Alentejo?), aparecia-me agora explicada nas suas origens, na sua evolução, nas suas variantes – eu que julgava existirem só dois esquemas rimáticos! – pelo Paulo Lima. Todas as dúvidas estavam respondidas e uma quantidade de nova informação palpitava naqueles capítulos, enviados por correio informático, de um livro ainda por publicar…
Assim reagia Daniel Gouveia, que introduz o livro “O Fado operário no Alentejo”, quando lia, pela primeira vez, o manuscrito deste trabalho.
Estamos perante uma obra que nos revela uma nova e importante perspectiva sobre o fado.
Diz o autor na introdução “Para o entendimento de uma obra que foge aos cânones, colocámos em cena uma outra personagem. Essa personagem, , quase oculta no Alentejo, é uma canção operária que se estruturou entre 1860 e 1930 numa geografia que ocupou uma área que vai de Setúbal à Porcalhota e desta até Santarém e que subiu depois até ao norte, após o que desceu para sul. Essa canção operária, essa personagem que colocamos agora em cena, chama-se fado”.
Este livro comporta ainda um importante e maravilhoso portfolio fotográfico da autoria de Augusto Brázio. Desde 1994, este fotografo tem vindo a percorrer o Alentejo, trabalhando com poetas e ambientes, captando o profundo silêncio das palavras andantes que transportam homens e mulheres por estradas e sítios, guardando a profunda solidão que os envolve.
OS cerca de vinte jornais dedicados ao fado fundados a seguir a Abril de 1910 são unânimes num aspecto: esta canção, na sua fase moderna, nasceu por volta de 1860. Foram seus fundadores João Maria dos Anjos, na guitarra, e José Maior, Damas, e outros nos fados. O primeiro abriu vastas possibilidades musicais à guitarra. Os outros reformaram os fados, dando importância aos textos memoriais e introduzindo outras temáticas nos poemas. A partir desta reformulação, para não chamar fundação, o fado aperfeiçoa-se e torna-se a canção da consciência da classe operária. Quase poderíamos dizer que a sua reformulação foi propositada. A leitura dos periódicos parece indicar tal facto. Intitular esta parte «Fado: 1910» prende-se a um facto para o qual a leitura dos periódicos coevos nos alertou: a importância da implantação da República para a canção operária. Não só durante a I República se editam mais de uma vintena de jornais dedicados exclusivamente ao fado, como em todos eles é referido o significado desta trova para o des•pertar da consciência operária, social. Não importa aqui inventariar e contextualizar as diferentes origens, mais ou menos arroladas, do fado. O nosso trabalho segue um caminho diferente: assumimos que o fado é uma canção operária, e iremos fazer um levantamento de diferentes estrofes e mostrar como houve, desde muito cedo, uma pesquisa com o objectivo de estruturar uma estrofe, ou estrofes, de grande perfeição ao nível da rima e do metro, espelho de uma grande vontade de saber. Para este trabalho, as obras clássicas sobre a chamada trova nacional, quer a História do Fado, quer a Triste Canção do Sul, são fontes secundárias. Pretendemos trazer à luz a voz daqueles que estiveram directamente ligados ao processo de criação do fado. Assim, as diferentes entrevistas ou textos alusi•vos a fadistas – designação aqui tomada em sentido muito lato – mostram-se nucleares. Na sua larga maioria, os intervenientes desta criação, ainda estão vivos na década de dez de novecentos. Os que entretanto morreram são testemunháveis por outros que os conheceram, com quem cantaram ou tocaram. É nestes registos que é necessário centrar a investigação sobre o fado. Sem uma investigação séria em torno destas figuras, a história do fado estará sempre por fazer. No fundo, é imperativo retomar o trabalho de Pinto de Carvalho, Tinop, suportado pelo método avançado por Alberto Pimentel. Uma análise dos textos usados e da sua evolução mostra que algo de único se passou entre 1877 e 1918. Os poetas populares, ao mesmo tempo que deixam de usar exclusivamente o quarteto, passando a incorporar a décima, iniciam um processo de complexificação textual, que ao nível do improviso é vertiginoso. Esta, se poderá ter tido na sua génese um acaso, em breve se tornou algo único no panorama da poesia popular portuguesa. Não conseguimos identificar paralelo algum para este fenómeno. Mas o fim da I República, em 1926, e o início da Ditadura Militar, o advento do disco2, o início da censura, e até mesmo a obrigatoriedade da profissionalização, vão matar o fado como canção operária, levando a que este se marginalize, assim como ao término do que ele tinha de mais espantoso: a experimentação textual.