Edição de luxo em digipak com livreto trilingue (português, ingles e patois) de 142 páginas a cores.
O universo musical do Bairro Português de Malaca pode ser dividido em duas grandes categorias: música desempenhada por grupos formalmente organizados, designada genericamente por “Dança Portuguesa” e dirigida, especialmente, a audiências exteriores ao Bairro, e a música desempenhada pelos residentes do Bairro, em contextos menos formais, para consumo interno, a “música doméstica”. Não deixa de ser curioso que o repertório português importado, cuja contribuição foi fundamental para que os residentes do Bairro Português de Malaca alcançassem um estatuto de auto-respeito e de reconhecimento nacional, tenha justamente adquirido esse estatuto á custa de antigas, mais concretamente híbridas, tradições domésticas malaio-portuguesas.
Hoje em dia o Bairro Português é famoso sobretudo pelos seus grupos de música e dança que actuam em contextos tão diversificados como espectáculos turísticos semanais organizados no Bairro, festivais organizados pelo governo, animação de
jantares promovidos por companhias multinacionais, contratos semanais ou quinzenais associados a festivais gastronómicos em toda a Malásia, e ainda viagens ocasionais a Macau. Através deste processo, a comunidade alcançou uma visibilidade nacional que em muito ultrapassa a sua dimensão actual. Tirando partido desta oportunidade, os residentes do Bairro têm procurado, junto das novas gerações, transformar os estereótipos negativos associados à sua etnia em modelos que lhes confiram um papel social de prestígio. Ironicamente, ao resgatarem a sua etnicidade portuguesa, os residentes do Bairro estabelecem também as suas credenciais como malaios de antiga estirpe, posição que lhes é confirmada pela sua aceitação nos planos do governo tais como o programa de títulos de tesouro Amanah Saham Nasional, outrora apenas acessível aos malaios e a pequenos grupos minoritários criteriosamente seleccionados.
A comparação entre os textos que hoje são cantados em Malaca e os originais portugueses – a maioria pertencente à colecção de Joe Lazaroo – desvendam interessante processo de transmissão oral. Em alguns casos os cantores conjugam palavras desconhecidas, criando gradualmente um novo vocabulário a maioria do qual não tem qualquer significado quer em português quer em kristang. Noutros casos, quando o texto original foi esquecido, algumas palavras e mesmo frases inteiras são substituídas por expresses em kristang, independentemente do seu conteúdo se conjugar ou não com o significado da canção. Para além disso, cada cantor tem a sua própria versão de cada canção.
Assim, após 40 anos de oralidade, os textos, outrora importados, foram absorvidos e introduzidos no contexto doméstico. Este processo foi acolhido e mantido pela segunda e pela terceira geração de receptores e intérpretes o que provocou ainda mais variações nos textos (e, claro está, as minhas transcrições das interpretações orais acrescentarão ainda mais variações).
A situação é ligeiramente diferente no caso do repertório mais recente introduzido pelo Pde. Sendim. Desempenhado por um grupo que inclui um cantor a solo (Joe Lazaroo) e com poucas oportunidades de integração no contexto doméstico, estes textos mantém-se, até ao momento, bastante próximos da versão original portuguesa. Todavia é possível que no futuro, e com a sucessão de vários cantores, estas canções comecem progressivamente a modificar-se, processo que já é visível neste disco, nomeadamente quando “Sub” Costa – sobrinho de Josephine – acompanha Joe Lazaroo.