CARLOS DO CARMO – o adeus final!
Deixou-nos fisicamente há algum tempo atrás – a 1 de Janeiro deste ano, mas quis fazê-lo de uma maneira bem pensada e diferente de todos e do que é hábitual:- com um inédito trabalho de originais ( que esteve para ser lançado ainda em vida, mas que a maldita pandemia atirou por várias vezes para depois do seu passamento), um novo disco feito testamento e carta de despedida (iniciada conscientemente já por alturas do início de 2019) a amigos, admiradores, público e portugueses em geral, num pack duplo que inclui no primeiro disco as tais novas composições originais, fruto e resultado da sua mais recente colheita literária e parte dele gravado quando já se encontrava nítida e fisicamente debilitado pela doença que haveria de o levar do nosso convívio, um novel projecto onde o artista continuou a manter a sua rigorosa e habitual linha de coerência selectiva e uma forte e tradicional exigência literária ( teimou até muitas vezes cantar obras de poetas que muitos nem sequer ousavam abordar) predicados com que ao longo da sua longa carreira nos foi brindando, onde o poder da palavra foi sempre recuperado, sem no entanto abandonar o seu habitual humor inteligente q.b. e toda a elegância estética e simplicidade profissional que sempre foram seu apanágio e tambem uma pessoal característica; no segundo disco vamos poder encontrar o retrato sonoro de um derradeiro concerto de adeus aos palcos, evento que registou produção da dupla Salvador Almeida/Alfredo Almeida e teve lugar no Coliseu dos Recreios, de Lisboa, há cerca de ano e meio, mais concretamente a 9 de Novembro de 2019.
O referido disco de originais certamente não foi aquele com que o artista sonhara e pretenderia deixar-nos , mas foi o projecto…possível, aquele em que Carlos do Carmo, apesar de tudo e de todas as vicissitudes e contrariedades e imagino que com um enorme sacrifício, se conseguiu suplantar a si próprio, sabe-se lá com que esforço sobrehumano, superando estoicamente contínuas dificuldades e uma iniludível fragilidade e debilidade aparentes que a doença já acentuava inexoravelmente…
Ora apesar de tudo, e tal como pretendia, o memorável fadista deixou-nos com “E ainda…”, um legado discográfico de despedida, apesar de tudo, absolutamente brilhante e de grande selectividade literária, um trabalho de notável resiliência e talento, dando nele vida, voz e eternidade a belas palavras de vultos de enorme grandeza literária como são sem dúvida gente como Hélia Correia, Vasco Graça Moura, Júlio Pomar, Mia Couto( este, autor da frase com que se encerra o disco), Sofia de Mello Breyner, Jorge Palma, Herberto Helder ou José Saramago e a inspiradas músicas de uma mão cheia de conceituados autores tais como Paulo de Carvalho, António Vitorino de Almeida, Jorge Palma, Joaquim Campos ou Mário Pacheco, tudo isto sob umas belíssimas e eficientes camas musicais, de elevada qualidade, talentosa intuição e uma grande versatilidade, da autoria dos seus três “mosqueteiros “do fado, que acabam afinal de contas por ser também os habituais e mais fieis “compagnons de route” do fadista dos últimos anos:- José Manuel Neto (guitarra portuguesa), Carlos Manuel Proença (viola de fado) e José Marino Freitas (baixo acústico), afinal um trio de eleição e de indesmentível bom gosto, que assinou também os brilhantes arranjos musicais das novas e derradeiras composições originais do fadista…
Recuando um pouco no tempo, recordo que conheci pela primeira vez o Carlos do Carmo, salvo erro, há cerca de cinquenta anos atrás no saudoso João Sebastião Bar ( propriedade de um muito querido casal amigo – a Vera e o Fernando Correia), o concorrente nocturno directo, em termos de intelectualidade do célebre Procópio e que era, cultural e politicamente, talvez o local mais “in” da Lisboa de então, habitual poiso e local preferido para etílicas viagens, algumas verdadeiramente épicas e de declamação de poesia, de muitos políticos (de esquerda), escritores, realizadores de cinema e igualmente de muitas das “aves” raras artísticas, musicais e noctivagas da altura, dentre as quais recordo assim de repente, entre outros, os nomes de Fernando Tordo, José Carlos Ary dos Santos, Paulo de Carvalho, António Victorino de Almeida, muita gente radialista das áreas da locução ou da técnica, umbilicalmente ligada ao Rádio Cube Português como por exemplo Luis Filipe Costa, José Ribeiro, Matos Maia, Orlando Dias Agudo ou Fernando Quinas, o grande Adriano Correia de Oliveira ( a espaços e na procura de um jantar pois que “liquidez” já ele tinha consumido em demasia nessa altura tardia das noites), Mário Viegas, José Fonseca e Costa, também muita gente da televisão como o meu querido trio de “brothers” Fernando Balsinha, João Filipe Barbosa e Raul Durão e o grande “charmoso”, é claro!
Ao longo dos anos eu e o fadista fomos de tempos a tempos convivendo, em jantares ou simplesmente bebendo no JSBar, desenvolvendo desse modo uma amizade e admiração reciprocas, que se cimentaram mais tarde quando ele passou a ser artista do catalogo da editora Phonogram, mais tarde Polygram e hoje em dia Universal Music, onde fui seu director de promoção até ao início dos anos oitenta, quando então saí para a partir daí integrar os quadros da multinacional americana CBS, na sua filial em Portugal.
Durante o meu percurso na mesma CBS , hoje Sony Music, e após a minha reforma, fomos mantendo contacto e então, já como produtor executivo independente, propus um dia ao Carlos trabalharmos em conjunto num projecto em que ele próprio escolheria os fados, que na sua opinião, tivessem sido os mais importantes na história do fado, disco esse que acabou por ser editado na então Som Livre sob o título de “As escolhas de Carlos do Carmo”; para isso andamos dias a fio em sua casa a trabalhar no projecto e foi por essa altura que um dia consegui ganhar coragem e levei para o nosso encontro de trabalho diário uma serie de discos meus -CDs e vinis, para serem autografados e também dois livros sobre ele.
Num deles, editado pela organização do prémio José Afonso, anual iniciativa da Camara da Amadora, tive então a enorme surpresa de receber a prova da sua grande amizade e carinho para com a minha pessoa, sob a forma de uma dedicatória pessoal (que mais tarde acabei por mandar emoldurar e tenho exposta na parede do escritório) e que rezava o seguinte:- “João, nesta viagem breve a que chamamos vida, às vezes há encontros que lhe dão mais sentido.Ter-te conhecido foi uma dádiva e ser teu amigo um privilégio. Um abraço do Carlos do Carmo – Novembro 2007”.
Confesso que chegado a casa, e ao ler a dedicatória, fiquei positivamente sem palavras não só pelo conteúdo da declaração em si, mas também por ela partir da mais importante personagem masculina fadista nacional, um homem de grandes pergaminhos, dotado de uma grande generosidade, saber, elegância, educação, humor, companheirismo e solidariedade, um verdadeiro gigante da canção nacional por excelência, um artista que sempre se constituiu como uma grande e viva referência e influência para todos os fadistas, mais antigos e mais novos também, um homem que partiu muito recentemente, mas nos deixou o seu adeus sob a forma de um disco de originais notável, ao mesmo tempo que se consagrava como uma figura mitica, inesquecivel e incontornável, de quem já temos, e eu em particular, muitas e eternas saudades !!!
E este seu derradeiro disco é a prova irrefutável de que o grande Carlos do Carmo, apesar de, bem à sua maneira, nos ter dito adeus, continua e irá continuar eternamente vivo na nossa memória colectiva!
Lá em cima, onde agora se encontrar, imagino eu que épicas noites fadistas deve ele protagonizar, na companhia de gente da sua área profissional que tanto admirava como sua mãe Lucilia do Carmo, Alfredo Marceneiro, Amália e Celeste Rodrigues, Beatriz da Conceição, Argentina Santos, Armandinho e tantos, tantos mais…
2CDs Universal Music